Depois de construir Maracanã, general do Exército nunca mais conseguiu
trabalho
Engenheiro-chefe da obra do maior estádio do
mundo, Herculano Gomes foi injustamente acusado de desvios
PORCAIO
BARRETTO BRISO
General
Herculano Gomes, que nada ganhou para construir o Maracanã, durante palestra:
luta para provar inocência -Arquivo O Globo / Arquivo
RIO
— “Engenheiro Herculano Gomes, ex-dirigente das obras do Estádio Municipal do
Distrito Federal, oferece-se para construir ou fiscalizar construções de
qualquer natureza”, dizia o humilde anúncio publicado nos classificados do
“Correio da Manhã" e da “Tribuna da Imprensa", em fevereiro de 1952.
Os interessados deveriam enviar uma carta para a Rua Jardim Botânico, 581, ou
ligar para o número 46-1515. Mas as cartas não chegavam, o telefone não tocava.
Ninguém queria contratar o homem responsável por erguer, em apenas um ano e dez
meses, o maior estádio do mundo.
A
vida de Herculano Gomes divide-se em dois momentos: antes e depois do Maracanã.
Considerado o maior especialista em concreto armado do país, ele foi convidado
pelo então prefeito — e amigo de longa data — Ângelo Mendes de Moraes para ser
o engenheiro-chefe da obra. Sua esposa, dona Celia de Campos Gomes, não gostou
da ideia, mas acabou convencida pelo próprio prefeito de que seu marido era o
nome certo para o desafio. Sua dedicação foi exemplar. No calor da obra, quando
os operários trabalhavam 24 horas por dia, ele decidiu mudar-se para o
canteiro, onde improvisou um quarto. Morou no Maracanã, longe de sua família,
durante três meses.
—
Como era general do Exército, ele não recebia salário pela construção. Estava
cedido para a obra a pedido do prefeito. Nunca ganhou um centavo — conta uma
das netas, a artista plástica Katie Hall Barbosa.
Terminada
a Copa do Mundo de 1950, o sereno e elegante homem, filho de alfaiate e de uma
dona de casa, foi acusado de ter desviado uma fortuna na casa dos 57 milhões de
cruzeiros. Era a corda arrebentando do lado mais fraco, já que o próprio
prefeito, pressionado pela oposição, instaurou a primeira de três comissões
criadas para apurar possíveis irregularidades.
Durante
os nove anos seguintes, até 1959, Herculano peregrinou por gabinetes de
secretários, prefeitos, ministros e procuradores. Carregava consigo pastas e
mais pastas, repletas de documentos e contratos que ele guardava zelosamente
para tentar provar sua inocência. Com sua carreira de engenheiro estraçalhada,
o general do Exército tentava salvar o que lhe era mais precioso: a honra de
seu nome. Àquela altura, uma missão muito difícil.
—
Fiz um relatório minucioso sobre o estádio do Maracanã. Havia irregularidades,
mas nada contra ele. Não o citei em nenhum trecho do relatório, pois sabia
tratar-se de um homem de bem — afirma Emílio Ibrahim, que assumiu em 1960 a
Administração dos Estádios da Guanabara e depois tornou-se secretário de Obras
do governo Carlos Lacerda.
POR FIM, A TRÁGICA MORTE DO FILHO
A
vida de Herculano foi investigada por todos os lados. Os parlamentares estavam
ávidos para encontrar qualquer indício de enriquecimento ilícito. Não
encontraram nada que o incriminasse. Pelo contrário: com a falta de trabalho,
as finanças da família — Herculano, a mulher e quatro filhos — estavam nas
últimas. A casa de dois andares e quatro quartos na Rua Jardim Botânico —, onde
hoje funciona uma clínica veterinária, perto da Rua Faro —, único bem do
general, foi à execução judicial.
Em
1951, ele chegou a empenhar joias de sua esposa, tamanha a dificuldade. Dona
Celia herdou um pequeno terreno em Juiz de Fora e acabou sendo citada em
editais de ação executiva, pois o marido não teve meios de pagar o imposto
cabível à herança de um único alqueire. Em documento redigido por ele mesmo em
sua defesa, foi irônico: “Este é o talvez ímprobo manejador de milhões, que
também teria permitido fossem dilapidados por auxiliares vorazes. Não teria
aceitado o encargo se acaso suspeitasse que o Maracanã se transformaria em
sinistro guet-apens (emboscada, em francês), armado pelo próprio chefe que me
escolhera”.
Em
entrevista ao “Jornal dos Sports", declarou ao repórter que seu processo
“andou de mão em mão, como batata quente”. E interrogou: “Se fosse tão claro,
tão definitivo assim, não acha que teria encontrado fim mais depressa? Não é
estranho que se haja consumido em labirintos e só hoje venha a furo?” Herculano
escreveu um livro, ainda não lido por ninguém, intitulado “A demolição de uma
calúnia”. Katie, sua neta, prometeu para si mesma que um dia conseguirá
publicá-lo.
—
Vovô era um homem correto e digno, ligado à família. Apontava seus lápis
impecavelmente com um canivete. Adorava ouvir música clássica. Lembro dele
andando pela casa, enquanto a música tocava, imitando os movimentos de um
maestro. Falava pouco e era muito carinhoso — lembra Katie.
Mas
a maior tragédia de Herculano ainda estava por vir. Em 1961, apenas dois anos
após ser inocentado das acusações, seu caçula de 20 anos caiu de mau jeito ao
mergulhar da Pedra do Arpoador. Com o impacto da queda, Herculaninho ficou
tetraplégico, mas não resistiu ao excesso de água nos pulmões e morreu dezoito
dias depois. O garoto, único filho homem, era a alegria do pai.
—
Ele começou a beber muito. Não encontrou mais respostas na Igreja Católica e
virou espírita — conta a historiadora Vânia Fragoso Pires, também sua neta.
O
quarto de Herculaninho virou seu escritório. Era lá que ele passava horas e
horas lendo livros kardecistas. Dois anos depois, o general sofreu uma parada
cardíaca na varanda do quarto. Era 11 de janeiro de 1963, ele tinha 63 anos.
Há
não muito tempo, Katie e sua família conheceram um antigo funcionário do
Maracanã — Isaías Ambrósio, falecido em 2012 — contratado pelo avô. E
emocionou-se ao ouvir dele que via Herculano, pois seu espírito ainda vagava
pelo estádio.
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